1. A ilusão do centro
A parte que se acha o todo, sem as partes, é incompleta.
O ser humano — ou ao menos a parte que hoje governa o mundo — se vê como o centro do universo. No Cristianismo ocidental, há uma leitura dominante de que Deus concedeu ao homem poder para dominar sobre todas as criaturas. A narrativa do Gênesis registra que o humano deu nome aos animais — e nomear é, de certo modo, cocriar. Mas também é assumir responsabilidade. O problema é quando confundimos poder com propriedade.
Há séculos o humano se distancia do todo. Trocamos a vocação de guardiões pela ambição de senhores. Chamamos de “domínio” o que talvez fosse chamado de “cuidado”.
2. Antropocentrismo, ruptura e retorno
A antropologia tradicional colocou o homem no centro da existência. Mas algumas correntes já perceberam que essa centralidade é insustentável — tanto ética quanto ecologicamente. Algumas vozes apontam caminhos:
– A teologia da Terra, que propõe o ser humano como guardião e não dono.
– A antropologia ameríndia, que reconhece alma nos rios, nos bichos e nas florestas.
– A filosofia pós-humanista, que inclui máquinas, fungos e bactérias como parte de nossa rede viva.
– E espiritualidades ancestrais, como as dos aborígenes australianos, que vivem como parte de uma grande canção.
O eu não é centro. É nó em uma rede.
3. O amor além dos genes
Há sete anos, li O Gene Egoísta, de Richard Dawkins. O livro é provocador. Ele afirma que o amor dos pais pelos filhos não é altruísmo, mas estratégia genética de preservação da espécie. E me pergunto: se isso for verdade, como explicar o amor que adota?
Dawkins sugere que esse amor “não pode ser o mesmo”. Eu discordo. Nunca adotei uma criança — mas duvido que o amor precise passar pelo DNA para ser real. Davi e Caio não são meus apenas por parecerem comigo. São meus porque os reconheço como parte de mim. E talvez o amor seja isso: reconhecer no outro um reflexo, mesmo sem espelho genético.
4. Liberdade, desigualdade e a ética do suficiente
Jean-Paul Sartre disse que o ser humano está condenado à liberdade — sempre precisando escolher. Mas e aqueles que não têm escolha? O pai e a mãe que ganham um salário mínimo cada, sustentando quatro pessoas com R$ 587 por mês por cabeça, são livres?
Bauman, em Amor Líquido, descreve uma sociedade marcada por vínculos frágeis, afetos descartáveis e relações de consumo — inclusive nas conexões humanas. O amor, diz ele, tornou-se algo a ser testado antes de ser vivido, avaliado antes de ser confiado. Vivemos em constante medo de sermos um fardo para o outro, e por isso os laços se tornam cada vez mais temporários e superficiais.
Mas o problema é ainda mais profundo: não se trata apenas de vínculos afetivos, mas da própria estrutura social. O que significa “liberdade” quando os direitos básicos são negados? Como exigir vínculos sólidos em uma realidade em que tudo — até o afeto — foi liquefeito?
Não sou de direita, esquerda, centro, ou qualquer sigla.
Sou a favor da vida.
E me dói saber que meu salário pode ser 20 vezes maior do que o de quem me serve um café, enquanto o mundo celebra bilionários e ignora a fome.
A liberdade sem dignidade é uma miragem.
E o amor sem compromisso é só reflexo da solidão coletiva que fingimos não ver.
5. A espiral do encontro: eu-tu-isso-além
Hoje acordei com mais de seis horas de sono — algo raro. E com um pensamento ainda mais raro:
Será que o eu só se reconhece ao ver o tu?
Será que o tu só existe quando há também o isso?
E será que tudo isso só faz sentido à luz do além?
Martin Buber, em sua obra Eu e Tu, afirma que a existência humana se dá em dois modos de relação fundamentais: Eu–Tu e Eu–Isso. No primeiro, há encontro, reciprocidade, presença. O “Tu” não é objeto, é sujeito. Nesse vínculo, não há utilidade, há relação viva. No segundo, Eu–Isso, o outro é coisa. É funcional, classificado, dominado.
Mas a vida, segundo Buber, só encontra sentido verdadeiro quando tocamos o mundo como um Tu, mesmo que brevemente — pois é nesse instante que tocamos o Eterno.
O que estou tentando pensar é algo que talvez expanda essa ideia: e se houver uma espiral relacional, onde:
– O “Além” nos dá sentido,
– O “Isso” nos ancora,
– O “Tu” nos revela,
– e O “Eu” emerge em resposta?
Uma relação de quatro faces: mística, material, interpessoal e existencial.
Talvez o eu só exista plenamente quando se entrega ao Tu, reconhece o Isso, e se abre ao Além.
O humano que se pensa inteiro sem os outros está enganado.
A parte que se acha o todo será sempre um vazio cheio de si.
A única inteireza possível é a que se rende à conexão.
E eu, continuo incompleto em busca dessa conexão ou reconexão…
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